23 de novembro de 2015

Pelado

A gente é feito de sangue, osso, carne e pelos. Algumas carnes mais moles, outras mais duras, mas tudo carne.

Os corpos, por mais diferentes que sejam, são apenas corpos. Servem para carregar nossas dúvidas, angústias e alegrias. E as memórias ficam impressas no corpo, mesmo que algumas sejam esquecidas.

O corpo, apesar de tão simples, é sagrado. Mas não por deuses ou pelo sobrenatural, mas sim por sua imperfeição. Cada estria, cada mancha, cada espinha, cada cicatriz é um símbolo dessa imperfeição e do próprio caráter efêmero do corpo, sempre em construção e reconstrução. O corpo não vai estar concluído nem quando o coração bater pela última vez. O corpo se desconstrói. 

Demorei para assumir meu corpo. Não gostava de mostrá-lo para ninguém. Ficar no time dos sem-camisa no futebol do colégio era um suplício. Gostava de camisetas folgadas. Se pudesse entraria na praia de roupas. 

Não curtia do meu corpo. Pernas finas, barriga, orelhas grandes. Pelos e mais pelos. Eu queria ser branco, sem pelos e magro. Pensando bem, acho que queria ser quase como os ETs dos filmes da década de 80. Nunca ia chegar nesse corpo imaginário.

Engordei, emagreci, engordei de novo, voltei a emagrecer e meu corpo nunca virou o meu corpo. Eu devia emagrecer mais, malhar mais, me depilar mais. Nunca ia chegar ao meu corpo verdadeiro. Eu gostava de transar quase no escuro.

Decidi então assumir meu corpo. Com todos os pelos, carnes, estrias, cicatrizes, angústias e cores.

Eu havia engordado muito e resolvi me matricular na natação. A caminhada do vestiário até a piscina foi uma das mais longas da minha vida e, claro, achei que todos me julgavam. Entrei na água e havia vários corpos. Gordos, magros, novos, velhos. O meu corpo era apenas mais um ali.

Em casa comecei a olhar meu corpo sem roupa, mesmo que não quisesse ver todos aqueles defeitos. Com o tempo essas imperfeições passaram a não importar muito, comecei a gostar mais de mim e do meu corpo. Levei trinta anos para assumi-lo.

Resolvi então participar do Chicos (www.chicos.cc) , um projeto sobre corpos e homossexualidade. O Rodrigo e o Fábio, organizadores do projeto, vieram a Brasília e um amigo indicou meu nome. Chegou a mensagem do Rodrigo e eu fiquei o dia inteiro pensando no que responder. Claro que eu não vou participar, até parece. Decidi  chegar em casa, tomar um banho, conversar com meu namorado, que também foi convidado, e só então dar minha resposta. Três dias depois o Rodrigo estava lá em casa.

Algumas cervejas, risadas e muitas conversas depois eu estava sem roupa no sofá da sala. É estranho ficar nu na frente de alguém sem que tenha nenhum contexto sexual. Mas não é uma sensação ruim. Todo mundo tem um corpo e esse é o meu.

Por que escondê-lo? Por que se preocupar com a opinião dos outros? É o meu corpo e espero que alguém possa se identificar com minha história e com minhas experiências que também foram retradas no projeto. Mas mesmo que ninguém se identifique, é a minha história. O que é ser gay para mim? Como foi a descoberta da minha sexualidade? Como é a relação com a minha família. Minha história é só mais uma. Meu corpo é só mais um.

A sessão de fotos acabou, mas continuei sem roupa enquanto a gente comia o jantar que o meu namorado fez. Eu continuei nu. Rodrigo e Iran com roupas. Mas nem fazia diferença, tudo estava tão natural para mim.

Não me preocupava se tinha gorduras, pelos, estrias. Não me preocupava com a forma que meu pau, meu saco e minha bunda estavam. O meu corpo virou um todo. E eu gostei dele. Gostei de mim.

As fotos e o vídeo ainda vão demorar alguns meses para serem publicados. E eu não tenho ideia de como ficaram. Mas não importa. Sou eu ali. A única diferença é que estou sem roupa e com menos barreiras.

Pra ilustrar, resolvi me olhar no espelho, fazer algumas poses e tirar um auto-retrato. O desenho foi feito baseado nesse nude.

3 de novembro de 2015

Canseira

Tem dias que até os ossos doem. O tutano dói, lá dentro do osso. E se tiver algo dentro do tutano também vai doer. É um cansaço na alma. Como a xícara depois do café, quando fica só uma borra seca, aquela crosta que um dia já foi café, às vezes até um café bom. Mas lavou tá novo. Dormiu e de repente tudo fica um pouco melhor. O ano já tá quase acabando.